O projeto de Lei 1904/2024, que veta qualquer procedimento de aborto acima das 22 semanas gestacional e que equipara o procedimento a homicídio simples, com pena de até 20 anos, tornando as vítimas de estupro mais culpadas do que o criminoso, revela um mal-estar social sobre o abuso sexual e o incesto realizado com crianças, adolescentes e mulheres.
Desde 1989, foi criado o Programa de Aborto Legal por Estupro no Hospital Municipal Dr. Arthur Ribeiro Saboya/SP, e dez anos depois o Ministro da Saúde, José Serra, publica a norma técnica “Prevenção dos Agravos Resultantes da Violência Sexual Contra Mulheres e Adolescentes”. Graças a esses canais instituídos foram surgindo provas consistentes de haver meninas de dez anos grávidas com 23 semanas, por estupro decorrentes de abuso sexual intrafamiliar ou extrafamiliar. A recusa dos médicos em fazer o procedimento gerou muitas incertezas sobre a viabilidade fetal, apesar da idade da gestante.
A bancada do Congresso que defende a PL 1904, desconsidera o perigo real que sofrem as crianças e adolescentes que vivem sob privação de comida e higiene. Como consequência dessas condições, a exploração sexual infantil fomenta o turismo sexual com meninas de 11, 12 e 13 anos se prostituindo em troca de objetos de consumo de uma infância perdida. O estupro também ocorre, comprovadamente, no abuso sexual intrafamiliar em que os agentes são membros da família, como o pai, tio, primo, irmão e outros, nesses casos tratando-se de incesto.
Sobram exemplos que ilustram, para horror da sociedade, como se procura abreviar a infância, de tal modo que as crianças são tratadas como objetos eróticos de desejo dos adultos, os quais, no seu desenvolvimento sexual convocam as crianças a satisfazer a pulsão pedófila de maneira perversa através de uma sexualidade fora da ordem civilizatória. (A civilização pressupõe a proteção das crianças em nome do seu próprio futuro)
A pedofilia compõe esse quadro de abuso sexual infantil e sobram exemplos, como o caso do pastor evangélico Dagmar José Pereira da Assembleia do Reino de Deus (GO) que deixou mais de 50 vítimas. Com beijos forçados e sexo oral (Revista Fórum- junho/2024) buscava a confiança junto às famílias para assumir o papel de conselheiro espiritual dos jovens e assim se satisfazia impunemente.
Outro caso, mas que ilustra a prática do incesto, isto é, o abuso intrafamiliar, é sobre um pai que estuprava a filha na UTI e que foi flagrado pelo corpo de enfermagem de um hospital de São Bernardo do Campo, no ABC Paulista. Toda vez que a visitava na UTI, pois ela havia tido paradas cardíacas com sequelas neurológicas, a frequência cardíaca da paciente aumentava até 190 batimentos sem uma causa específica. Uma enfermeira desconfiou e os profissionais de saúde resolveram gravar as visitas quando constataram que ele passava as mãos nas pernas, nos seios e genitais da filha (Revista Fórum- junho/2024).
No final dos anos 90 começaram a se tornar comuns denúncias na Europa, Ásia e América Latina, em que a pedofilia estaria associada à pornografia infantil eletrônica, em torno da qual os pedófilos se escondem e proliferam uma ideologia perversa polimorfa. Essas denúncias fizeram emergir um universo totalmente desconhecido e recalcado das profundezas do inconsciente.
É preciso reconhecer que o abuso sexual infantil intrafamiliar e extrafamiliar e o assédio moral e físico que muitas mulheres sofrem diante do estupro, seja do pai de seus filhos ou do companheiro abusador, são situações traumáticas que ferem os princípios da sociedade sexual civilizada, muito mais ainda quando mães e esposas são coniventes com a situação por serem dependentes dos parceiros, e não conseguirem recursos para buscar ajuda.
O incesto e a pedofilia são tabus que até então não eram pronunciados fora dos círculos das orgias inspiradas no Marquês de Sade, que o filósofo e escritor francês (1740-1814) incluía em seus romances, contos e peças de teatro. O livro “120 dias de Sodoma” publicado em 1909 reúne personagens que encenam um imaginário próprio da pedofilia e do incesto. O ser-supremo-em-maldade era o libertino que sequestrava púberes de famílias ricas para vivenciar todas as sacanagens e perversões até atingir o gozo mortífero. São descrições de cenas de violência sexual, estupros, necrofilia, canibalismo, torturas, coprofilia e relações incestuosas. Aliás, sua obra foi escrita nos 25 anos que esteve preso na Bastilha e em hospícios, não por ser um pedófilo ou pai incestuoso, ou um libertino sagaz que se dedicava às brincadeiras sexuais com prostitutas, mas por ser um ativista político e revolucionário.
Pedofilia é um termo que se origina do grego paidós (criança) e philia (amizade-amor) e é, segundo o CID 10, na Classe F65, Parafilia, que significa algo que esta fora de, isto é, uma distorção da preferência sexual, no qual o objeto sexual são crianças pré-púberes geralmente abaixo de 11 anos. Na clínica, quando uma pessoa é diagnosticada com Pedofilia, ela deve ter acima de 16 anos de idade ou ao menos ter cinco anos de diferença com a criança abusada.
Havendo uma classificação significa que há também a perspectiva de tratamento, o que é positivo para a sociedade, mas também acontecem os abusos do sistema, mediante os quais, quando há recorrência do abuso sexual o pedófilo pode buscar o tratamento para poder se livrar da prisão, sem que necessariamente esteja interessado em reconhecer ou tratar o distúrbio. Esses são, não raramente, os casos de aqueles que são pegos por algum descuido ou mesmo por terem criado armadilhas inconscientes para serem descobertos.
Como tudo o mais em psicologia e psiquiatria, há de se ter cuidado de não confundir a perversão da pedofilia das fantasias sexuais dos neuróticos, não se podendo incriminar os que têm fantasias sexuais com crianças e que nunca passaram nem passarão ao ato, uma vez que sofrem e sentem culpa, porque atormentados com dilemas morais, e que não se encorajam em procurar tratamento até porque a patrulha policial contra o crime inibe em demasia essa iniciativa com um discurso moralista e preconceituoso sobre o tema, o qual pode ocorrer eventualmente no próprio ambiente terapêutico por um profissional despreparado para lidar com o tema.
Embora há de se tomar muito cuidado para não confundir perversões com neuroses, no momento atual a pedofilia intra e extrafamiliar está tomando dimensões que ameaçam a própria ordem da civilização e, por isso, a denúncia é necessária e ela é a porta de entrada para veicular e pôr em destaque o universo da pedofilia, abrindo espaço para o estudo e tratamento tanto do adulto como da criança e do adolescente, protagonistas da cena, algozes e vítimas.
Com efeito Institutos e ONGs surgiram em defesa da infância, tais quais, @serenas.br, @liberta.br, @survivor.br, entre outros. Todos procuram com muita excelência divulgar e trabalhar na direção do Direito da Criança, do Adolescente e das Mulheres e, especialmente, instrumentalizar os educadores a detectarem quando as crianças/alunos manifestam mudança de comportamento sem causa específica, que podem eventualmente sugerir a experiência do abuso.
Ainda incipientes são as pesquisas sobre Pedofilia e o material clínico é escasso, mas é de se destacar o trabalho de Cosima Schiania, psiquiatra e analista didata do Departamento de Saúde Mental de Gênova, que coordenou, em 2001, a equipe de atendimento aos pacientes pedófilos. Uma observação clínica se sobressai, o paciente pedófilo não suporta envelhecer, o que indica que ele busca na jovialidade da criança o que ele perdeu. A fantasia da juventude eterna o seduz ao ponto de transformar o amor pela criança em sentimentos obscenos e violentos numa relação essencialmente fechada, obrigando a criança a ser cúmplice.
No entanto as discussões sobre as potencialidades terapêuticas da pedofilia, do incesto e das psicopatologias das Parafilias (sadismo, masoquismo, fetichismo, pedofilia, exibicionismo, voyeurismo e outros) são parte da constituição psíquica e da sexualidade humana. Concerne aos profissionais da saúde psicológica tratarem desses casos, mesmo havendo contratransferências que dificultem a escuta do paciente. A profilaxia é urgente, pois, só assim o número de casos de abuso sexual podem diminuir e mais crianças poderão deixar de serem vítimas indefesas.
O incesto ou abuso sexual intrafamiliar é uma prática que remonta culturas antigas, no Egito, na Grécia Antiga e em Roma onde cabia ao chefe da casa conduzir o comando do pater famílias abrangendo a todos, os filius, pela iniciação sexual, sem interferência do Estado. Só na Idade Média a sodomia começou a ser combatida e a história de tais abusos se silenciou nas catacumbas dos lares de família e foi relegada às reuniões secretas de pedófilos e estupradores de crianças.
Entretanto não paramos de ouvir sobre esses abusos, em que crianças de três e quatro anos são violentadas pelo pai e tio com lesão extensa na região do períneo, e outras que chegam a óbito em razão das taras parentais. Por que tantos casos no Brasil se avolumam de maneira tão perversa provocando tanta indignação? A divulgação é importante, mas também sabemos que apesar de a indignação ser uma resposta que alivia o horror da notícia, ela não tem eficácia diante do fato. Uma resposta de força seria o poder público e todos os órgãos de defesa da infância e adolescência criarem dispositivos que funcionem de forma eficaz.
Na prática, e apesar de teoricamente haver esses dispositivos, quando se recorre ao Disque 100 (Direitos Humanos) o denunciante fica mais de 20 minutos expondo a situação e a telefonista atendente, com muito boa vontade, digita e pergunta várias vezes a mesma coisa para não errar no preenchimento do formulário, mas ela não sabe informar quais serão os encaminhamentos da situação específica. Apenas relata que o denunciante tem o número do protocolo para depois voltar a ligar e saber sobre os desdobramentos do caso. Quando retorna, a ligação não se completa. Ora, estamos refém de uma situação que não tem eficácia, mas serve apenas aos burocratas do sistema.
Hoje em dia, as oportunidades de expansão dos sociopatas no universo da internet, nos filmes e na pornografia infantil através do algoritmo da IA, os mantêm em completo anonimato, criando novas formas de sedução e prazer absoluto do ser-supremo-em-maldade.
Freud, nos Três ensaios da sexualidade infantil (1905) expôs ao mundo dos adultos que a criança vai significando as fases libidinais a partir das sensações de prazer e desprazer, onde os impulsos da escopofilia, isto é, olhar para os órgãos genitais dos adultos consiste em desejo de saber e de conhecimento a respeito da vida sexual dos adultos. Ora, o pedófilo aproveita esse intervalo entre o que não existe ainda e o que está prestes a existir para realizar seu ato perverso e afundar a criança num oceano de angústia e de tristeza.
Enfim, a infância é o que temos de mais precioso no desenvolvimento humano e na medida em que reduzimos sua magnitude, transformamos humanos empobrecidos e frágeis diante de todas as perversidades e crueldades que o homem é capaz de impor a outrem, e é muito triste constatar que os legisladores olham para outro lado, defendendo estupradores e pedófilos sob uma maquiagem moralista ao criminalizar as mulheres e crianças vítimas do assédio.
FANI HISGAIL, psicanalista e autora do livro: Pedofilia um estudo psicanalítico, Ed. Iluminuras, SP, 2007